23 de Setembro, 2023
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Opinião: À Mesa com Portugal – Bem Apurado

Opinião: À Mesa com Portugal – Bem Apurado

Se há fruta que tem de ser comida no tempo certo, são os figos. Cedo demais, estão verdes, a nada sabem, tarde demais, ficam em papa nas nossas mãos e nota-se o fermentado. Num clima atlântico que temos aqui pela Beira, há que estar atenta ao tempo certo. É como na cozinha e no tempo que a comida está ao lume. Apurar é uma arte, pois ainda que o guisado puxado possa saber bem, não é muito amigo da digestão, por outro lado, mal apurada, a comida parece estar sem sabor. Uma arte, o apurar. Direi eu, antes, uma sensibilidade para o gosto, para o sabor, pois que a alimentação merece que estejamos atentos, por isso, é algo que tanto se imiscui com os cinco sentidos. Ainda que admire o modo científico com que muitos veem e praticam a cozinha, gosto de a sentir selvagem, livre, não padronizada, capaz de evoluir pelo que o palato tem de desejo.
E isso, não se oferece numa escala, num padrão, numa regra. Talvez não estejamos preparados para isso, pois que o sempre igual dá-nos conforto, mas se não formos caciques num mundinho criado por nós, sabemos que a cozinha evolui e, por isso, é tão boa, tão surpreendente.
Por isso, gosto de ouvir as receitas a falarem numa torre de babel culinária, adoro a confusão das conversas à volta dos tachos, das mil e umas maneiras de fazer a mesma receita, do desvio à regra, do ingrediente que parece não ter nada a ver, do procedimento que se introduz por isto e por aquilo. Ah que a cozinha é tão bela quando não a olhamos como se fosse um texto bem alinhado, mas quando a sentimos livre, a explodir com os quatro cantos do quadrado, quando o ponto de fuga nos leva mais além. Isso sim, dá-me prazer ouvir. Já o discurso entediante do “não é assim que se faz”, “essa não é a receita original” e tantos mais arrotos de posta pescada, deixa-me sem ar, sufoca-me e, nesses momentos, só me apetece calar o pedantismo andante.
As receitas são livres e essa liberdade cabe no espaço de cada um, de cada família, de cada comunidade. Ainda que a regra seja útil, como poderá a cozinha ser espaço de criação se nos fecharmos sempre nas mesmas convicções? Acreditem que a azia é mais sinal da finitude do círculo da receita do que qualquer problema de saúde, é a receita a dizer-nos que é preciso mudar, olhar o futuro, ouvir a diversidade, saltar a linha, transgredir em nome do sabor, do bem-estar e da nutrição. Sim, porque as receitas são livres.

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