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Adania Shibli, escritora palestiniana, ganhou o Prémio LiBeraturpreis 2023, cuja entrega seria ontem, na Feira do Livro de Frankfurt, mas a associação responsável pela distinção cancelou a cerimónia devido à guerra em Israel. O diretor da Feira do Livro, um dos maiores acontecimentos mundiais do setor livreiro, veio afirmar que o evento condena “o terror bárbaro do Hamas contra Israel, da forma mais veemente possível”. Aparentemente, parece-lhe que esta é uma forma de condenar o terror bárbaro. Mas não é. O terror bárbaro de todas as guerras resulta do ódio e da intolerância. E é isso que devemos combater. A Arte serve também para isso e está – tem de estar – numa zona de paz, porque essa é, também, a sua função. Cancelar um escritor, por muito que se possa discordar do que ele escreve, não serve a paz. Serve a intolerância e, com isso, a guerra.
Foi o livro “Um Detalhe Menor” (escrito em árabe, em 2017 ) que valeu a Adania Shibli o prémio. A tradução em inglês chegou a finalista do National Book Award e do International Booker Prize. O prémio não foi consensual, nem tem de ser, e já não era antes do atentado do Hamas: um dos jurados chegou mesmo a deixar o júri em protesto pela escolha. No entanto, o seu cancelamento é ainda menos. Mais de 600 escritores, entre os quais se incluem os Nobel Annie Ernaux, Abdulrazak Gurnah e Olga Tokarczuk, e escritores como Colm Tóibín, Ian McEwan, Lauren Groff e Judith Butler, assinaram uma carta aberta contra o cancelamento. Também a porta-voz da PEN Berlim veio manifestar o seu desagrado com a decisão: “nenhum livro se torna diferente, melhor, pior ou mais perigoso, porque a situação das notícias muda”; “um livro é digno de um prémio ou não é. Retirar-lhe o prémio seria fundamentalmente errado, tanto do ponto de vista político quanto literário”. Adania não ia receber o prémio em representação da Palestina, mas em nome próprio: como escritora e mulher. Não se trata do cancelamento de uma nação, mas de uma autora.
Isto não é novidade: os cancelamentos de artistas em tempo de guerra são históricos. Ainda recentemente, aquando da invasão da Ucrânia, assistimos a várias tentativas de silenciamento de artistas russos: reputados festivais de cinema baniram filmes e cineastas russos; Valery Gergiev, o maior maestro russo, viu espetáculos cancelados e foi despedido do cargo de Maestro-chefe da Filarmónica de Munique; orquestras recusaram tocar Tchaikovsky e – cúmulo dos cúmulos – a Universidade de Milão ponderou cancelar um curso sobre Dostoiévski, um dos maiores romancistas de sempre, preso, obrigado a trabalhos forçados e quase executado por combate ao Regime Russo. Em Florença, a autarquia recebeu vários pedidos de cidadãos para retirar da cidade a estátua do romancista russo, autor de alguns dos livros mais importantes, alguma vez escritos, sobre o lado negro da experiência humana, mas também sobre o respeito pelo Outro e pelo pensamento individual, mesmo quando divergente do nosso. Só com muita criatividade – ou má-fé – é possível transformar Fiódor Dostoiévski num símbolo do poder que ele sempre combateu.
O único fator de ponderação na entrega de um prémio literário é a qualidade da obra. A nacionalidade da autora não é argumento nem para a atribuição, nem para o cancelamento. Cancelar um prémio porque a autora é palestiniana é profundamente errado – e isto é independente da nossa opinião sobre o conflito. Todos nos sentimos profundamente angustiados com o que se passa no mundo, um espetáculo de ódio, horror e bestialidade, que custa a crer ser possível ter mão humana. São, de facto, ataques bárbaros que devemos condenar da forma mais veemente possível. Mas não assim. Estes silenciamentos ferem a liberdade de expressão e artística e ferem a Humanidade. Castigar artistas e a Cultura é fomentar a intolerância, mãe de todas as guerras. Não precisamos de mais vítimas e é quando a dor do mundo nos ensurdece que mais precisamos da Arte. Perseguir artistas em nada contribui para a paz. Pelo contrário: estes cancelamentos encerram, em si, um desejo de violência e de vingança, que em nada ajuda o mundo a depor armas. Só alimentam o ódio e fazem-no de forma especialmente perversa: matando a Cultura, que é o que nos salva e o que nos resta para recomeçar, depois do horror absoluto.
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